A TCC se apresenta como um modelo de tratamento individualizado, profundo e bastante distanciado de qualquer receita simples ou panaceia padronizada para todos os casos
Durante o período de nosso contato com alunos de diversas origens interessados na formação em terapia cognitivo-comportamental (TCC) no Centro de Psicologia Aplicada e Formação em TCC (CPAF-RJ), encontramos muitas visões (crenças) a respeito deste modelo. Alguns consideram que esta é uma terapia superficial que trata de sintomas, mas não se aprofunda nas reais fontes dos conflitos, de modo a gerar resultados apenas transitórios e paliativos. Outros consideram o modelo como rígido e inflexível, de modo a apenas beneficiar algumas poucas categorias de pacientes. Outros ainda consideram que este é um modelo baseado na aplicação de princípios estudados em ratos e outros animais e que não fazem justiça à complexa subjetividade do sujeito paciente.
A cognição influencia o comportamento, ou seja, os pensamentos que resultam das interpretações que fazemos ao longo da relação com o mundo (interno ou externo) são importantes para entender o modo como nos emocionamos nesta transação. As emoções estão fortemente vinculadas ao nosso modo de pensar. O medo e a ansiedade estão relacionados a avaliações (interpretações) de ameaça a objetivos pessoais importantes. Já a raiva está associada a avaliações de dano intencional ou negligente. A tristeza se relaciona com avaliações de perda de metas importantes.
Muita pesquisa tem sido feita sobre como a cognição influencia as emoções (CLORE & ORTONY, 2008) e a hipótese de que o modo como pensamos se entrelaça à nossa experiência emocional também nela exercendo influência em diferentes direções é algo plenamente aceito na comunidade científica. Para os terapeutas cognitivo-comportamentais é absolutamente importante investigar e compreender como seus pacientes interpretam as situações da vida cotidiana. Para isso, desenvolvem métodos que têm como objetivo ajudar esses pacientes a entrar em contato com os pensamentos e imagens que acompanham as experiências emocionais associadas aos problemas que querem tratar.
O desenvolvimento de técnicas para monitorar o processo de pensamento traz implícito um segundo princípio adotado pelas terapias cognitivo-comportamentais: o conteúdo de nosso pensamento pode se tornar conhecido à medida que nossa atenção esteja focada nesse processo, no momento em que a experiência emocional é vivida. Aqui está evidente a influência fenomenológica nas TCCs, pois se considera que o material que se torna acessível à consciência fornece informações relevantes e essenciais ao entendimento do nosso funcionamento. Esse é um dos tópicos de divergência com abordagens consideradas profundas, que entendem as causas verdadeiras de nosso funcionamento residindo em camadas profundas da personalidade, não acessíveis à consciência e, consequentemente, não tratadas pelas TCCs.
A adoção da visão profunda implica em considerar que o produto revelado à consciência foi distorcido por mecanismos de defesa que não permitem o acesso às forças inconscientes, verdadeiros motores do comportamento, de modo que qualquer tentativa de alterar processos conscientes resultará em mero deslocamento dos modos de escoamento das forças inconscientes em conflito.
O mesmo raciocínio seria válido para o tratamento dos sintomas. Na medida em que os sintomas são manifestações simbólicas de conflitos inconscientes, sua abordagem direta resultará apenas em deslocamento para novos sintomas que cumpririam a função de expressão desses conflitos. Certamente estamos tratando de modelos diferentes de entendimento da personalidade: um baseado na abordagem de processamento de informação, o outro baseado numa abordagem médica, em que uma bactéria causa certos sintomas, cujo tratamento é paliativo se a bactéria, verdadeira causa da doença, não for tratada.
Crenças e esquemas:
A favor do modelo cognitivo-comportamental conta os dados obtidos pelas pesquisas (DOBSON & DOBSON, 2009), que não fornecem qualquer evidência para crenças como a substituição de sintomas que seria esperada quando causas subjacentes não são tratadas. Na verdade, ao contrário desta afirmação, encontramos estudos que mostram na TCC taxas de recaída menores quando comparadas ao uso de medicação (HOLLON et al., 2006). O modelo de processamento de informação tem permitido o desenvolvimento teórico-prático que resulta em intervenções validadas experimentalmente e isso representa um dos principais méritos das TCCs: constituir-se como um modelo baseado em evidências (DOBSON & DOBSON, 2009).
Um terceiro princípio importante das TCCs decorre naturalmente do que foi visto acima. Podemos modificar nosso comportamento e lidar de modo mais efetivo com as nossas emoções se conseguimos entender a forma como nossas crenças moldam as interpretações que regulam o fluxo de interações com o mundo. À medida que podemos desenvolver habilidades que nos permitem entrar em contato com o produto de nosso funcionamento cognitivo (pensamentos e imagens) e, da mesma forma, à medida que esse produto revela, de fato, informações relevantes para o entendimento de nosso funcionamento, é natural que o uso de estratégias sistemáticas de monitoração, questionamento e teste da realidade se demonstrem eficazes para a mudança comportamental e emocional.
O conteúdo de nosso pensamento pode se tornar conhecido à medida
que nossa atenção esteja focada nesse processo
É possível modificar nosso comportamento e lidar de modo mais efetivo com nossas emoções se conseguirmos entender a forma como nossas crenças moldam nossas interpretações
As TCCs constituem modelos psicoterápicos que se apoiam em métodos de avaliação e intervenção baseados nos princípios acima. A teoria cognitiva implícita nestes modelos se inspira fortemente nas contribuições de Beck e seus seguidores (BECK et al, 1979; BECK, J. S., 1995; BECK, FREEMAN & DAVIS, 2004; DOZOIS, FREWEN & COVIN, 2006). De acordo com essa teoria, os processos de personalidade são formados e operam a serviço da adaptação. Os padrões de personalidade derivam de estratégias selecionadas em nossa herança filogenética, pois facilitaram a sobrevivência e a reprodução em nosso ambiente de adaptação (que não foi, certamente, semelhante ao de nossas cidades e sociedades como as conhecemos hoje). As síndromes sintomáticas (transtornos de ansiedade e depressão, por exemplo) e os transtornos da personalidade (narcisista, obsessivo, dependente etc.) representam manifestações disfuncionais e extremas destas estratégias.
O processamento de informação antecede a operação dessas estratégias, ou seja, para que uma estratégia seja deflagrada, é necessário a transação com o meio seja avaliada (interpretada) de modo a colocar em jogo metas importantes do indivíduo (sobrevivência, status, recursos sociais, vínculos afetivos importantes, autoestima, parceiros sexuais). O modo como uma situação é avaliada depende, em parte, de crenças subjacentes relevantes. Os conteúdos de nossa experiência consciente são os produtos deste processo interpretativo e são referidos como pensamentos automáticos, ou seja, os pensamentos e imagens que acessamos quando tomamos consciência do que se passa em nossa mente.
Os pensamentos automáticos são de especial importância nas TCCs. É através deles que terapeuta e paciente acessam os resultados (produtos) dos processos interpretativos conduzidos pelos esquemas. Muito do que acontece em TCC depende do acesso a esse material que, contudo, não é tão simples de se alcançar. O fluxo de processos automáticos no sistema cognitivo é rápido e em paralelo. Quando a atenção consciente se dirige aos pensamentos automáticos, a partir da instrução de observar o que passa na própria cabeça enquanto se vive uma experiência emocional, o que encontramos é um fluxo de ideias que assumem a forma de fala telegráfica, e não de um discurso verbal linear e bem estruturado. Consequentemente, os terapeutas cognitivos tiveram que criar ferramentas e métodos de autorregistro para ensinar seus pacientes a identificar com eficiência crescente os conteúdos do pensamento automático.
A adoção da visão profunda da TCC implica em considerar que o produto revelado à consciência foi distorcido por mecanismos de defesa que não permitem o acesso às forças inconscientes
A conexão com as crenças subjacentes se faz através de técnicas de questionamento. Ao final do processo investigativo reunimos informações de diferentes níveis cognitivos: os pensamentos automáticos no nível mais superficial e as crenças subjacentes em níveis mais profundos (centrais e intermediárias). As crenças centrais representam o nível mais profundo da estrutura do esquema e se referem ao autoconceito, normalmente referido como declarações absolutas sobre o self e o mundo ("sou indigno de amor", "sou um fracasso", "sou especial e único", "o mundo é perigoso e mau" etc.). Em um segundo nível, derivado deste mais profundo, estão as crenças intermediárias, que correspondem a tentativas de se adaptar ao mundo conforme o olhar das crenças centrais. Deste modo, as crenças intermediárias se revelam como regras e suposições que representam estratégias de manejo ("coping") construídas a partir das crenças centrais ("se eu me revelar às pessoas como realmente sou, elas me rejeitarão"; "eu tenho que ser melhor do que todos, para ser valorizado"; "se eu baixar a guarda, serei enganado e prejudicado"; etc.).
Os esquemas não só regulam as interpretações que ocorrem na transação com o mundo, mas também dão origem a estratégias adaptativas (ou desadaptativas). As interpretações dos esquemas disfuncionais apresentam características que as tornam fontes sistemáticas de confirmação. Um indivíduo que acredita que as pessoas não são confiáveis pode interpretar as situações sociais de modo distorcido, confirmando sistematicamente suas crenças básicas. Pode, por exemplo, tirar conclusões, sem base em evidências suficientes, a respeito das intenções das pessoas. Pode também selecionar tendenciosamente apenas as experiências com pessoas não confiáveis, desconsiderando as experiências vividas com pessoas confiáveis.
As síndromes sintomáticas (transtornos de ansiedade e depressão, por exemplo) e os transtornos da personalidade (narcisista, obsessivo, dependente etc.) representam manifestações disfuncionais e extremas destas estratégias
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Além das distorções cognitivas que resultam na confirmação tendenciosa dos esquemas, vimos que as pessoas também constroem estratégias ("coping") que provocam consequências sobre si mesmas e sobre sua relação com o mundo. Esse mesmo indivíduo referido acima pode construir uma estratégia de estar sempre em guarda para se defender das agressões esperadas ("se eu estiver sempre atento, não serei atacado") e, com isso, provocar nas pessoas atitudes também defensivas e hostis, confirmando sua expectativa de um mundo ameaçador e não confiável.
As TCCs constituem modelos psicoterápicos que se apoiam em métodos
de avaliação e intervenção
As TCCs utilizam técnicas cognitivas, comportamentais, experienciais e de relação terapêutica que visam identificar e intervir sobre o processamento esquemático distorcido e sobre as estratégias de adaptação construídas pelo indivíduo. Além disso, as TCCs abordam cada caso a partir de um estudo cuidadoso e idiossincrático dos fatores de desenvolvimento e de manutenção dos problemas apresentados à terapia, ao qual chamamos formulação ou conceituação de caso. A partir da formulação, desenvolve-se o plano de terapia, um conjunto de estratégias especialmente moldado para cada paciente específico. Assim, a TCC se apresenta como um modelo de tratamento bastante individualizado e profundo, bastante distanciado de qualquer receita simples ou panaceia padronizada para todos os casos.
ACESSEM: http://psiquecienciaevida.uol.com.br/ESPS/Edicoes/59/artigo191347-1.asp
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